Barulho sem limite fora do alcance da fiscalização. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), sancionou o projeto de lei aprovado na sexta-feira (20) pela Câmara Municipal que prevê a transformação de uma área de preservação ambiental, em São Mateus, em aterro sanitário.
O texto trazia alguns “jabutis”, ou seja, matérias estranhas à original, sendo um deles sobre emissão de ruído na cidade. Na prática, eventos e shows autorizados pelo poder público ficarão livres da legislação sonora e, por consequência, das regras do Programa Silêncio Urbano (PSIU).
Hoje, o limite é de 60 decibéis no período diurno e 55 decibéis no noturno em áreas com predominância de atividades culturais, turismo e lazer. A mudança veio no apagar das luzes de 2024, na última sessão legislativa do ano, a mesma que aprovou o Orçamento para 2025.
Jabuti não sobe em árvore
O “jabuti” legislativo sobre shows e eventos não estava no texto inicial, aprovado em 1ª votação em 14 de novembro, mas foi incluído no substitutivo da liderança do governo Ricardo Nunes na última quinta-feira (19).
A proposta original sobre o Ecoparque Leste ganhou um quinto artigo sobre o assunto do ruído, desconexo do teor do PL. O acréscimo incluía a alteração no Art. 146 da Lei de Uso e Ocupação do Solo, justamente sobre limites sonoros. A mexida foi sutil no fim do item “d” dentre as atividades à margem da fiscalização.
Antes, a redação era a seguinte: manifestações em festividades religiosas, comemorações oficiais, reuniões desportivas, festejos ou ensaios carnavalescos e juninos, passeatas, desfiles, fanfarras, bandas de música, desde que se realizem em horário e local previamente autorizados pelo órgão competente ou nas circunstâncias consagradas pela tradição. E ficou assim:
Reunião da WTorre com a Prefeitura
Entre os principais beneficiários da medida está o grupo WTorre, administrador do Allianz Parque, arena com mais shows no Brasil. Desde 2014, o estádio do Palmeiras recebe dezenas de atrações todos os anos, entre nomes nacionais e internacionais.
Entretanto, a WTorre Entretenimento/Real Arenas vem desrespeitando reiteradamente o PSIU. Até agora, foram ao menos seis multas aplicadas, incorrendo em duas determinações de fechamento administrativo, previsto em lei a cada três infrações.
A empresa, porém, obteve uma decisão liminar na Justiça, um efeito suspensivo contra a sanção. Existia uma permissão até 23 de dezembro, que o grupo tentou prorrogar até 2 de janeiro. Isso possibilitaria a realização do evento de música gospel Vira Brasil 2025, da Igreja Lagoinha, marcado para o dia 31. No entanto, a Justiça negou o pedido.
Três dias antes da aprovação do projeto de lei, na última terça-feira (17), houve uma reunião da cúpula do governo Nunes com a WTorre. De acordo com a agenda oficial, estiveram presentes pelo lado da Prefeitura: Ricardo Nunes (prefeito), Edson Aparecido (secretário de Governo), Fabrício Cobra (secretário da Casa Civil), Alexandre Modonezi (secretário de Subprefeituras) e Clodoaldo Pelissioni (secretário-adjunto de Governo).
Já pelo lado da empresa: Marco Siqueira (CEO da WTorre), Marcelo Frazão (vice-presidente da WTorre Entretenimento), Mara Natacci e Patricia Lucci (jurídico da WTorre Entretenimento), Bruno Estimo (analista de comunicação da WTorre) e Gustavo Torres (diretor-executivo do Novo Anhangabaú da WTorre Entretenimento).
História repetida e promessa de judicialização
Não é a primeira vez que a base do governo na Câmara aprova dentro de outro projeto uma flexibilização do volume para shows. Em novembro de 2022, na proposta para a regulamentação das dark kitchens (cozinhas industriais compartilhadas), um trecho aumentava o limite permitido de 55 para 75 decibéis em estádios e casas noturnas.
Em setembro de 2023, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo barrou o aumento de barulho, considerando parcialmente procedente uma ação de políticos do PSOL. O Supremo Tribunal Federal, em 2015, julgando um caso sobre emendas em medidas provisórias, considerou inconstitucional a artimanha legislativa conhecida como “jabuti”.
O vereador Celso Gianazzi (PSOL) prometeu ir à Justiça mais uma vez.
LAMENTÁVEL! Dia triste para a cidade de São Paulo!
Na última sessão da Câmara em 2024, os vereadores que apoiam o prefeito Ricardo Nunes aprovaram “propostas” que só irão prejudicar a vida das pessoas. Um enorme retrocesso:
1/5 pic.twitter.com/K78WOiu0Me
— Celso Giannazi (@CelsoGiannazi) December 20, 2024
Quem acompanha o assunto de perto, desde o início, é o Fábio Cabral, um dos representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Política Urbana. O também presidente da Associação Viva Pacaembu (de moradores do bairro do Pacaembu) vê boas chances de uma nova ação judicial prosperar.
Fábio criticou a aprovação da lei: “para favorecer os negócios de uma única empresa, decidem mudar a lei e prejudicar toda uma cidade”, disse em entrevista à Alpha FM.
A reportagem tentou contato por mais de uma vez com um dos diretores da WTorre, mas, por enquanto, não obteve retorno. O espaço permanece aberto para futuras manifestações.