“Saltburn” é o filme do momento e segundo a diretora o longa foi feito para “incomodar”

Você provavelmente já viu a internet comentar sobre o filme do momento: Saltburn. A produção estreou na Amazon Prime no final de dezembro e tem como protagonistas Jacob Elordi e Barry Keoghan. 

 

A história de “Saltburn” é relativamente simples: tentando encontrar seu lugar na Universidade de Oxford, o estudante Oliver se vê atraído para o mundo do charmoso e aristocrático Felix, que o convida para passar um verão inesquecível em Saltburn, a extensa propriedade de sua família. Porém logo a trama nos surpreende com mistério e cenas muito polêmicas que geraram discussões na internet. 

 

Com um elenco que inclui Rosamund Pike, Carey Mulligan, Richard E. Grant e Alison Oliver (e Margot Robbie nos bastidores como produtora executiva), esse é o segundo filme de Emerald Fennell (que já ganhou um Oscar por: Bela Vingança)

 

Seja entre os apoiadores ou pessoas que não gostaram nem um pouco do filme, o certo é que “Saltburn” tem gerado debates que há muito não se via no mundo cinematográfico. As respostas às cenas mais inquietantes, para a diretora, é algo que eleva a arte já que afirmou que o longa é mesmo “para incomodar”. 

 

E essa parece ser a intenção de Emerald. A diretora afirmou que: “Não me importo em deixar alguém profundamente desconfortável”, acrescentando que tudo o que ela busca na audiência é uma ‘resposta natural e primal’ ao que está diante deles. 

 

Em uma conversa com a Glamour UK, a diretora entra em detalhes sobre seguir o que ela chama de tradição ‘inerentemente feminina’ das narrativas góticas; suas fronteiras ao retratar violência na tela; e por que, apesar de vir de uma origem privilegiada, ela se identifica muito com o sentimento de se sentir  ‘alguém fora do lugar’, que seu protagonista Oliver também sente ao longo da narrativa. Confira o trailer abaixo: 

 

 

ENTREVISTA NA ÍNTEGRA

 

  • Em uma declaração antes do lançamento de Saltburn, você disse: “Eu queria fazer um filme sobre o amor… um romance e horror, já que eles são a mesma coisa“. Você pode explicar essa declaração? Por que romance e horror são a mesma coisa?

Então, na tradição gótica, um romance é sempre também um horror. Suponho que seja porque o gótico trata de nossa relação com as coisas que desejamos e como isso é invariavelmente perigoso e complicado. Eu queria fazer algo sobre como a repulsa e a raiva são tão parte do desejo quanto o amor e o afeto.

  • O que eu amo em Bela Vingança e também neste filme é a sua qualidade sombria e distorcida. Muitas vezes, você é comparada a diretores e artistas masculinos que compartilham essas qualidades, como Bret Easton Ellis e Roald Dahl (e eu sei que você se identifica pessoalmente com Alfred Hitchcock também). O que acha que uma perspectiva mais feminina tem a oferecer para essas narrativas mais sombrias?

Isso é tão interessante, pois penso no gótico como sendo algo inerentemente feminino, como as irmãs Brontë e Hilary Mantel e Patricia Highsmith [autora de O Talentoso Ripley]. Acho que há algo sombrio e especificamente feminino também. Porque quando você está escrevendo sobre sexo e poder, essas coisas são experienciadas de maneira diferente se você for mulher.

Os escritores e cineastas que mais admiro tendem a escrever ou criar coisas muito, muito sombrias, mas de uma maneira muito bonita. Sofia Coppola é um ótimo exemplo do gótico americano moderno. Não há ninguém mais sombrio, mas tudo o que ela faz é tão tátil, bonito e sedutor que a escuridão é como uma faca envolta em cetim. As mulheres que eu admiro estão trabalhando nesses lugares super sombrios.

  • E quanto à violência? Pessoalmente, acho difícil ver muito sangue na tela, mas em Saltburn, mesmo havendo violência, há uma qualidade contida e artística sobre isso. Quais seriam seus limites ao retratar violência na tela?

Eu não tenho nenhum limite, eu acho. Quando se trata de qualquer coisa, sempre é sobre qual é o propósito. Nunca é sobre a coisa em si, mas sim, qual é o propósito de fazer essa coisa ou mostrar essa coisa. Em Bela Vingança, o terrível acontecimento com Nina nunca é mostrado, apenas ouvido. E acho isso devastador. Eu nunca quis mostrar algo assim. E nunca teria parecido certo. Mas às vezes é necessário ver a violência, da mesma forma que a nudez pode ser usada de maneiras necessárias e desnecessárias. Sempre é por que, em vez de o que.

É ‘Por que essa será a melhor maneira de mostrar esse sentimento?’ Pessoalmente, não acho que deva haver nada fora dos limites. É apenas se é justificável. É sobre o propósito deste filme, seja lá o que for. Por exemplo, em Saltburn, há a dança nua de Barry Keoghan ao som de Murder on the Dancefloor, que trabalhei com uma editora incrível, Victoria Boydell. É algo tão alegre, pós-coital e eufórico: todas as coisas que a música é. Eu não me importo em me sentir desconfortável ou melhor, eu me importo, mas estou interessada nisso. Eu não me importo em deixar alguém profundamente desconfortável. Isso é uma exposição.

  • O que torna isso uma exposição?

Isso nos coloca nesses espaços liminares que tentamos afastar. Dado o quanto tudo é binário nos dias de hoje, não gostamos de ser obrigados a sentir muitas coisas opostas ao mesmo tempo. Um bom exemplo neste filme é algo que nos faz sentir nojo e excitados ao mesmo tempo. Isso é uma parte muito comum do desejo. É algo a que todos respondemos talvez nem estejamos cientes de nós mesmos: uma certa dinâmica de poder e elemento de nojo e repulsa nesse tipo de desejo.

Existem momentos neste filme em que, em uma plateia de cinema, você terá algumas pessoas rindo, algumas se afastando, algumas gritando, algumas com raiva e algumas pedindo silêncio umas às outras. A audiência está envolvida tanto com o filme quanto entre si. Você quer esse tipo de experiência comunitária em que as pessoas estão experimentando coisas de maneira diferente.

É por isso que comédia e horror são sempre tão interessantes juntos porque proporcionam uma resposta natural e primal. Mas há outra parte entre essas coisas que é como, eu não sei se devo estar rindo, não sei por que acho isso engraçado. Tudo nisso é cruel ou humilhante ou triste, seja lá o que for, mas estou rindo. Então há uma cumplicidade também. É por isso que o cinema é tão incrível, porque é contido e você pode ter todas essas experiências.

  • Seu protagonista, Oliver, é um outsider na sociedade que ele entra. Comparativamente, você não é uma outsider para o mundo aristocrático retratado no filme. Você estudou em internatos em Marlborough e na Universidade de Oxford, e você falou sobre crescer com privilégios em entrevistas antes. Essa qualidade de outsider é algo com o qual você de alguma forma se identifica mesmo assim?

Quero dizer, todos nós? E você? Quero dizer, não conheço ninguém que não esteja, até certo ponto, envolvido em muita voyeurismo nas vidas de outras pessoas, desejando as vidas e as experiências e os corpos e a comida e os filhos e as roupas de outras pessoas. Não sou imune a querer coisas que não posso ter. Não sou imune ao sentimento de auto-repulsa que depois se transforma em um anseio por prejudicar o objeto do desejo. Essa é uma ciclo com o qual todos nós que vivemos no mundo e na internet estamos familiarizados.

Então, há isso, mas também, ainda vivemos em uma cultura casualmente misógina. Não importa qual seja sua situação, você sempre terá aquele leve sentimento de outsider. E, se você é um escritor, você sempre é um voyeur. Então, cada pessoa no mundo acha que está um pouco de fora. A menos que você esteja com sua família assistindo TV. Em todo o resto, eu não sei o que é se sentir completamente à vontade o tempo todo.

  • E quanto ao seu personagem aristocrático popular em Oxford, Felix Catton, cuja casa da família é a propriedade Saltburn? Ele não se sente do lado de dentro desse mundo?

Ele não tem nenhuma autoconsciência. Não acho que ele questione seus sentimentos sobre nada. Mas se fosse pressionado, tenho certeza de que diria que estava um pouco envergonhado com tudo isso.

Ele se veria como acima, além até. Ninguém pensa que é básico – que está completamente inserido no mundo em que nasceu ou vive. Nunca conheci alguém tão autoconfiante que não está, que não está questionando um pouco como chegou onde está. O outsider é universal. Se você é consciente, se sente separado dos outros porque somos solitários, porque só podemos ver dentro de nossos próprios corpos e mentes.

Fonte da tradução da entrevista: Glamour 

Novos conteúdos

spot_img

RELACIONADOS

Relacionados