RESENHA: “O Jardim das Cerejeiras” no Teatro Anchieta

Cerca de três horas de espetáculo (com intervalo) pode parecer muito para os nossos tempos de hiperconexão, ultravelocidade e impaciência. Mas este aqui me pareceu fluir como um bom livro, quando, superada a fase difícil da compreensão dos vários personagens, se engata na história e espera o seu desenrolar.

“O Jardim Das Cerejeiras”, encenado pela Companhia da Memória, está em cartaz até 2 de março no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. A peça foi a última escrita pelo dramaturgo russo Anton Tchékhov (1860-1904), meses antes de seu falecimento.

Segundo o diretor Ruy Cortez, Tchékhov deixou nesta obra final suas “impressões, sensações, pressentimentos sobre nós, nossa existência, sobre a humanidade. Ele fala muito sobre os riscos da maneira como nós lidamos com a natureza e uns com os outros”.

Enredo

Na trama, uma família de aristocratas da Rússia volta de Paris, na França, achando que ainda pode viver com o luxo e a comodidade de antes. Logo, porém, a matriarca Liuba (Sandra Corveloni) e o irmão dela, Gáiev (Mario Borges), são avisados que as dívidas chegaram no limite e não podem ser mais ignoradas.

O alerta parte de Lopakhine (Caio Juliano), um homem rico, neto e filho de servos que pertenceram à propriedade da família, onde consta o enorme jardim das cerejeiras. As árvores são representadas por balões brancos enchidos com gás hélio e prendidos por barbante, espalhados pelos assentos da plateia.

Lopakhine afirma que a propriedade está para ir a leilão e sugere derrubar as cerejeiras para a construção de casas de veraneio, as quais poderiam ser alugadas para se conseguir quitar os débitos. Lopakhine oferece um empréstimo para o projeto sair do papel, entretanto, a ideia é prontamente rechaçada.

A família guarda memórias afetivas do jardim, símbolo também de um tempo que está em decomposição. Apesar disso, os patrões continuam a inferiorizar os funcionários, como o desastrado – divertido para a plateia – escriturário Epikhódov (Daniel Warren), apelidado de “Vinte e duas desgraças”.

Curiosamente, Gáiev não é menos caricato, sempre evocando uma expressão do jogo de bilhar e fazendo discursos despropositados, como uma homenagem ao centenário armário da casa.

Contexto

A história é ambientada na Rússia pré-revolucionária, já em ebulição desde antes de 1918 com revoltas de camponeses. O desenvolvimento de atividades pré-capitalistas entra em choque com o agrarismo atrasado, e a nobreza perde terras, o que a família de Tchékhov sentiu na pele.

A servidão, iniciada no século XVII e abolida só em 1861, acabara inicialmente por prejudicar donos de terra e os antigos servos, que, apesar de livres, se viram endividados e com pouco apoio para se sustentarem. O final da peça não poderia ser outro.

Lopakhine vinga o período de chibatadas dos antepassados e compra a propriedade para dar seguimento ao plano original, o corte das árvores para a construção de casas de veraneio, num exemplo do avanço da emergente burguesia, focada no progresso e despreocupada com o meio ambiente.

A cena final é simbólica. Em uma espécie de metáfora da morte do jardim e da antiga ordem social, Firs (José Rubens Siqueira/ Luiz Amorim), velho criado dos aristrocratas e contrário à reforma da servidão, se acha abandonado e se estira no chão.

PS: um detalhe curioso é a extensão do palco para a plateia, literalmente de forma física. Um tablado, local de alguns dos diálogos da peça, foi estendido ao centro sobre partes das cadeiras do teatro, representando uma quebra em relação a apresentações tradicionais. Quem ficou sem lugar foi convidado a se sentar, olhar só, bem no palco original, assistindo de camarote das laterais.

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